Hugo Crespo, do Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e colaborador no livro “The Global City”, considera que a autenticidade do quadro Rua Nova dos Mercadores que ilustra o cartaz da exposição “A Cidade Global” está provada no memorandum de May Morris
Embora Ramada Curto não tenha problemas em dizer-se incompetente para entrar no campo das representações visuais, já que não sendo historiador de arte apenas analisou a iconografia literária ou textual da Lisboa de Quinhentos, não deixa não apenas de afirmar da falta de autenticidade de uma obra (duas telas) que aparentemente nunca viu “de viso”, como também, e de forma muito pedagógica, de alertar para o facto de a uma tal obra não ter sido feita pelas comissárias, no livro que coordenaram em 2015, “Global City: on the streets of Renaissance Lisbon”, “qualquer demonstração” da sua autenticidade, prescindindo de “qualquer prova” que a corroborasse (pp. 36-37). De facto, o nosso meio académico está manifestamente cheio de exercícios estéreis, de divagações que procuram apenas o auto-elogio e pouco acrescentam ao debate científico que se quer saudável, honesto e profícuo. Às autoras não foi necessário tal exercício porque a “Vista da Rua Nova dos Mercadores” pura e simplesmente não pode ser falsa e isso é uma evidência histórica e material, evidência que de qualquer forma a fraquíssima argumentação dos dois historiadores nunca sequer poderia beliscar. Na verdade, o texto de Ramada Curto não apresenta qualquer argumento contra a autenticidade das duas telas, sendo antes o pretexto para uma (tardia) recensão crítica ao livro que as comissárias coordenaram e que serve de palco para proclamar a superioridade da sua historiografia em detrimento de outras.
A vista, pelo trabalho de investigação de Jordan, foi comprovadamente adquirida por Dante Gabriel Rossetti (1828-1882) em 1866, autora que encontrou o rasto documental da pintura, do vendedor (George Love), da localização da loja onde Rossetti a descobriu (em Bunhill Fields, Londres), por entre a correspondência entre este famoso pintor pré-rafaelita e o seu amigo George Price Boyce: “a large landscape with about 120 figures of the school of Velásquez”. Se para Curto é impensável que Rossetti pudesse pensar ser a “Vista da Rua Nova” de escola velasquenha é bom lembrar não apenas o relativo desconhecimento neste período das escolas de pintura no país vizinho, prova de julgamento anacronístico de Curto, mas também a sua incompetência em matérias da história da arte, que o próprio começa por reconhecer. Suficiente para totalmente rebater a ideia absurda que esta vista é uma falsificação do século XX, é a investigação subsequente de Julia Dudkiewicz (“Dante Gabriel Rossetti’s collection of Old Masters at Kelmscott Manor”, “The British Art Journal”, 16,2, 2015, pp. 89-100) que prova documentalmente que a duas telas pertenceram sem sombra para qualquer dúvida à colecção de Rossetti. Com efeito, May Morris (1862-1938) herdou a casa de Kelmscott Manor do seu pai, o pintor William Morris depois da sua morte em 1896. No dia 17 de Junho de 1926 May prepara um Memorandum, registando todos os objectos que faziam parte dos interiores da casa, como apêndice ao seu testamento e onde todos os pertences de Rossetti são cuidadosamente listados. A “Vista da Rua Nova dos Mercadores” surge claramente listada por May Morris como “Two Pictures of Scenes in a City, Part of D. G. R.’s things”. A evidência documental, absolutamente indesmentível e corroborada pela análise material das telas (suporte e pigmentos) aquando do seu restauro por Ruth Bubb em Oxford, deita por terra qualquer dúvida sobre a autenticidade da vista e do argumento que, sendo produto do século XX, serviria para “perpetuar a ideia «patrioteira» de um Portugal neotropicalista.” Nada poderia estar mais longe da verdade!